Poesia

Tenho feito algumas séries de poemas, pensando sempre em temas específicos para cada uma. Apresento-as aqui.




POEMAS BRASIS


1


Acho ótimo ir a Paris
mas,
a pergunta que não quer me calar é:
e Roraima,
está na Internet?
(Desenhei aqui minha morte.
Fiz um poema com fogo
e ele me derreteu.
Vou ter que falar
a partir de uma outra perspectiva.)
Roraima,
de quem nada sei,
não tem terras vigentes,
só terras vadias.
Num atlas qualquer em meu coração
aponto Roraima com precisão e atitude.
Não, não está na Internet,
está numa rede que me une a esse invento.
Roraima existe, pai?
Roraima é a jaula dos meus sentidos loucos,
aqueles a quem calo
por falta de ajuda.
Roraima não me deixa ir a Paris;
agarrá-la com as mãos,
molhá-la em afluentes indígenas,
nomes tupis e guarânias à toa,
Roraima existe, pai.
Não está assim tão fácil de mim;
me exige uma fauna
de que só disponho em sonho.
Em Roraima são todos daltônicos,
de uma coloração rara,
não vêem o mundo como ele é,
mas como eles são.
Roraima resiste, pai.
Mentindo, me diz coisas.
Fala de estradas de barro
desfeitas pelo ócio
que há muito não vê caminho.
E do triste que é ser ali.
E do largado que é ser aqui.
E do computador que ligo
e não conecto
quando junto com outras partes do mim.
E do contente que rio
quando não sei que me falta Roraima
para me contentar.
Roraima insiste, pai.
Sem Roraima,
não posso ir nem a Bangu.














2


Que eu junte meu plantel de esbregue
em um século de mandacarus
e na refacitude do meu itinerário
molhe de amor as moscas do Crumataú!
Sempre fui de maldormir,
mas agora é em exagero:
vou descer para o Brejo,
de águas sólidas no vapor do vento
que do leste vem,
mares cabrios perdidos no além,
e meus dentes que caem
de comida não há.
De fina ironia em falta,
de plena dureza infinita,
meus dentes plantados no solo cabrio
desse Crumataú em desdém.
Desmantelo-me se me faço tola:
viola no braço,
jegue em ação,
e o manque do bicho me dando aflição,
renego minha origem
e peço perdão,
Crumataú, terra minha,
te deixo na mão.










3


Que as cabras são bichos sem rema
de quase-proa em sabão;
disso se sabe monte,
e safadas, também.
De deixar bode e homem
com coisa em pé,
formosas de se soubessem balir,
ovelhas se crendo, já;
não há cabra que não se veja com lã.


Já ovelha, que nunca vi,
que aqui em Rês não há,
sei que não tem coqueteza,
sei que se acha em desgrenha,
querendo alisar o cabelo
que nem mulher de motel.
Sangrando em burrice, ovelha de fora;
de onde vêm as ovelhas que não vêm,
mas que sei?
Só vêm com sangue,
são bichos de fora,
de Rês não são,
em Rês não ficam,
são de algum outro Brasil.
Eu também sou do Brasil,
nem sei bem qual,
acho que sou mulher de motel,
já alisei o cabelo
mas hoje não aliso mais;
e em Rês também não fico.










4


Esse lugar,
eu queria que existe esse lugar:
dá peixe
mas não é rio nem é mar.
Um professor teve por aqui,
ele me disse o nome de três pássaro
que canta em tono ligeiro
e eu anotei
mode não esquecer os nome.
Meu filho, quando fez treze ano,
garrou o papel, leu em voz farta
e disse:
mamãe,
tô erudindo.






7


Nuvens, nuvens, nuvens,
quero ir acima das nuvens, mãe,
acima de todas elas!
O sol não está lá?
Então!
Acima de todas, hein!
...
...
...
...
...
...
Ah, que pena,
esse avião é muito pequeno...
...
...
Nossa,
espaços de nuvens,
nuvem – espaço – nuvem,
todos os tipos.
Olha ali um pedaço de céu,
uma parte do sol!
Quero olhar o sol de frente, mãe!
Não dá,
dói o olho.
Que bom,
uma nuvem tapou,
fico com os raios
e não fico com a dor.
...
...
Embaixo,
Kilimanjaros,
Titicacas de nuvens;
em cima,
um espaço branco sideral.
Conheço um cantor que chama Wilson Sideral.
Será que ele vem da Sidéria?
...
...
Uma bola branca de sol,
que absurdo!
Sol com véu de nuvem fininha querendo furar meu olho mas a nuvem não deixa,
ela é minha amiga,
ela vai me proteger até mostrar pra mim o mais puro...
céu!
...
...
...
...
...
...
(Ah, já vai descer?
Que pena, Bel’izonte é tão pertinho!...)














8


Responda logo, mãe:
queria que esse lugar mexesse comigo
e vertesse meu sangue pra dentro do Jaruí,
e que a doçura das águas
fizesse do meu sangue bolhas
e os cardumes dançassem dentro delas.
Quando me formo poeta, mãe?
Num guento mais esperar.
Sem poesia
me sinto perdida,
com poesia
não sinto nada;
me vêm os volumes
e eu só na administração.
As palavras me ajudam
porque o que não administro,
invento.
É como se você me tapasse com seu hálito
em dia de frio, mãe,
sua canção de ninar.
Só o olhar de mãe
já faz a gente dormir!
Poesia, também:
nem precisa ser hora de entender o mundo,
ela vem abrindo umas gaiolas,
bulindo com os veres
e os dizeres,
bulindo com o “eu” da vida,
tornando épicas as formigas,
brincando com os séculos,
inventando países,
descosturando artes...
Como se fosse um vaso gigante
cheio de cartõezinhos com essas brincadeiras...
Quem dera, mãe,
me formasse poeta.












9


Silêncio na borda do Jaruí:
e é piracanga, motré e congo-do-rio
e formação de dança,
os bicho pulando como tivesse corda,
as água dançando nos óio da gente,
belezura de mundão de líquido barreado e simples.
Eita, borda do Jaruí que não cansa jamais!
-    Pegá um pescado, fio?
-    Pegá um pescado essa hora desmilingue os bago, nega;
‘xa pra adispois.
Nega não sabe da mansidão precisa,
home tem que descansar pros bago não cair.
E assuntar na natureza.
Esse Jaruizão criando formosuras,
se revirando inteirinho à caça de enterter a gente local,
‘magina,
pegar pescado essa hora!
Adispois, num pego motré,
que é peixe cabrio,
além de bonito feito;
motré é peixe como miçuca-papona é pássaro;
bonito feito.
Mais tarde, se o sono não me tirar pra conversa,
vou ter uma prosa com o Jaruizim,
o Jaruí-mirim,
que é meu e eu chamo de Jaruizim,
que é leito farto e chechém,
pesca com tudo:
rede,
ponta,
até na mão dá pra pescar.
Que agradecer, Jaruizim,
sua bondade infinita e paciência
com esse pescador mole e breguento que eu sou.
Tirando seus peixe,
e peixe nem pranta,
é tirar e rezar pra dar mais,
ô, Jaruizim,
perdôa eu!
Pudera, beijava suas água,
aliás,
quantas vez num já beijei,
fosse com raiva dos peixe
fosse com alegria dos cujo;
pudera, beijava suas água agorinha
num fosse a dança sem-fim
do seu pai
Jaruí.
Meus óio até mareia,
nem chamo ninguém pra ver isso,
fico mordido de cobra, parado.
Noutra vida venho motré,
que motré é peixe como miçuca-papona é pássaro,
dos melhor da espécie de peixe,
só no Jaruí pra dar.
E peixe não é planta;
se fosse, eu plantava no Jaruizim
pra pescar nem que fosse unzinho.
Se vingasse no Jaruizim
é porque era de comer, ora!
E se fosse de comer,
havia de ter o gosto mais limpinho
e terninho
de todos os peixe que tem;
havia de ter um gosto perfumado,
colorido,
penteado,
havia de ter gosto de muié,
eita, que coisa boa, Jaruí,
teu motré no meu prato
se desse no Jaruizim!








10


...e todo esse arvoroço
só porque a Sirlênia teve aqui
e pegou umas pimenta?
Por acauso você vai comer essas pimenta tudo
que seu avô prantou?
Ói, faça as conta:
O Zenílson não come que tem dor no estômgo.
A Dã Genilda num guenta mais por causo da idade.
Os menino come pouquinha,
nem o Renival que é mais maiorzinho num é chegado.
Que dirá
Zé Craudino,
Erlimar,
Mirajoara.
A Jalnice tá viajando,
só volta lá pro meio de Setembro;
quando voltar,
já tem mais num sei quantos pé pra ela se fartar.
A Cleidecí come com suficiença,
num é sangria desatada que nem você.
O Ronêidson Lucas tá ficando igual a tudos irmão,
come pimenta, bota pra fora a comida toda,
uma estragação.
Diz que é praga do avô,
o véio seu Orlandino safado ‘sconjuro.
Só quem come muitas pimenta,
de fazer careta,
de dar dó,
de fazer o pelo-sinal,
de beber água e leite e tudo o que é líquido da casa,
de rezar de joelho pra Santo Arieudes pra nada de mau acontecer,
só quem come muitas, muitas pimenta aqui é você,
Maria.








11


Sua mãe me perguntou se eu sou índio.
Quis saber nome de pai, de mãe, de tribo
lugar de nascença e tudo o mais.
Interessante, sua mãe.
Parecia mais preocupada comigo que com você.
E, ao preocupar-se comigo,
trazia um pouco de tristeza na voz,
e eu fiquei matutando enquanto respondia
no por quê daquela possível tristeza.
Mãe de milênios,
mãe de milhares,
ela fora.
A tudo assentia com a cabeça,
conhecedora de toda a história,
pra trás e pra frente.
Parecia entender o que havia acontecido
com os Oliveira do meu pai,
com os Santana da minha mãe,
com aquelas tribos tão impensáveis,
distantes, impossíveis, mortas da minha avó.
Depois me olhou muito e quase chorou.
Quase, por fora;
por dentro, chorou, sim.
Depois sorriu
e olhou pra minha barriga,
como se eu fosse parir o neto dela!
Ela me viu grávido,
os meses se mostrando,
o moleque se formando,
me viu parindo
e amamentando
e eu acho que era um indiozinho
meio com cara de judeu,
um pouco preto na cor,
com canto flamenco no jeito de chorar.
Sua mãe me usou, Joana.
Ela pariu em mim o Brasil.










12


Esses caminhos de terra
que se embolam com meu sangue
dentro de meu peito
e, quando me deito,
se não durmo, peço perdão –
essas poças de sabor e leite,
essa América que não me deixa parir,
esse jeito morte de ser,
seus bigodes e pregas que me sulcam a vida
e me desnorteiam,
América Latina
(seu silêncio imposto)
- sou mouca pra ti, América,
não me fales, não,
deixa-me a sós,
nenhum de nós nos salvará,
procura para ti um alvará,
funciona,
fornica,
fornece,
e que tenhas o Brasil que mereces,
esses caminhos de pouca terra,
esse meu peito de pouco sangue,
sou pouca pra ti, América,
deito-me e durmo em teu mangue.
















EUCLIDES


1


Traz tua língua até mim, Euclides;
reforça minha trajetória de mulher
e lambe-me o que já desejas.
Euclides.
Por dentro te chamarei assim,
o que me é mais feminino
pulsando ao dizer-te o nome,
Euclides,
eterno.
Por favor, achega-te.
Devagar, não tenhas pressa,
faze tudo devagar e com zelo.
Com quase esquecimento.
Com suave calorzinho.
Mantendo-te.
Gozando onde queres,
Euclides,
berrando o que deves e o que temes.
Estarei para sempre tua acolchoada,
felpuda,
silência ou cantante,
como preferires,
como preferirmos.
Nada do real importa.
Apenas me devolveste a manhã,
me revelaste além de um sexo qualquer,
me puseste em teu colo
para que eu adentrasse
a porta de meu gozo
com a vida,
com o amor,
com tudo.








9


Euclides das intensidades,
que mostra o que é intenso e pretenso,
que foge do que é cavalo e do que é rei,
Euclides do mar e do ar
(pedradas em minha cabeça
por saber e coroar,
rainha de cordão de prata
e lustre desenxabido),
Euclides que mostra o que é intenso e pretenso,
morde meu pescoço para cocoricar ao avesso,
e eis que cuspo o que não devo:
de dentro me saem as larvas marinhas
- estou toda águas,
choro sem pensar,
sem pesar,
apesar,
com medo medonho de ser;
Euclides dos socorros avulsos,
díspares,
entregues ao esmo do amor trivial
que escrevo sem me dar conta
(estou sempre redigindo uma carta final);
de finalmentes se desfez a estrela e eu,
que em anos meus tanto a amara,
pretensa e intensa de tanto sê-la,
estrela singela do caos e da vida rara.








15


Resolve-me agora,
meus lábios pedindo,
minha roupa ruindo,
minha carne de fora.
E me comes tão fundo,
teu mexer pouco,
teu silêncio rouco,
teu silêncio inundo.
Me lembro de tudo:
teus cheiros do além,
teu bastão tamanho cem,
teu nirvana mudo.
De tudo me lembro:
minha própria fundura,
tua envergadura,
o gosto de teu membro.
E a tudo me rendo:
eu virada em poema
desnuda, sem emblema,
e tu sorrindo e me lendo.






17


Estou, estou rodeada de sentidos,
de corações palpitantes,
fervores,
tremores desmedidos.
E não é só a América que me rodeia,
mas teu mastro,
teu rastro,
tua língua que me semeia.
Estou, estou pontilhada de intensidades,
exclamativa,
sensitiva,
quase uma flor achada no meio de tantas saudades.
E não sou só ibérica na lua cheia,
mas crescente,
incessantemente contente
por dormir em tua teia.


(brincando de Neruda)










18


Euclides,
tua cara de nada.
Tuas mãos paradas no ar,
teu esbugalho,
fitando.
Teu senso prático
teu peso ético
teu jeito estóico
teu medo cético
teu riso heróico
teu simples ser.
Tuas mãos paradas no ar,
em pouco afazer.
Não sabes como lidar,
tão lindo em teu não-saber.
A coco e pão,
Euclides,
tu és homem de pouca solidão
(teu lado pouco é imenso).
E nem ficas tenso
quando te toco e o descubro.
E nem soas fenso
nem cheiras a absurdo.










21


Te amo com a força do amor de todas as mulheres,
de não caber em nenhum papel os dizeres,
de não soletrar em tipógrafo algum as tintas,
de não penetrar em poros nem pelos os ares,
te amando com a dor de todas as mulheres
de forma para ti insondável e sem apelo,
e não te amo a ti,
mas a Euclides,
tão somente homem em sua configuração
e, de tão homem,
incapaz de me preender em minha ação.
Te amo de uma forma que só uma mulher entenderia,
mas, sendo ela mulher,
tanto assim não a amaria.
E não te amo a ti,
mas ao amor,
e é o amor de todas as mulheres:
amor sujo, fétido, solúvel,
amor cru, trôpego, inconstante,
amor tolo, mal-pago, errante.
E te amo de um jeito que já não descrevo,
mas, ao contrário,
que a mim me descreve;
te amo ao avesso
para encontrar-me sem osso,
como quem quisesse eliminar
a possibilidade mesma de ser amada,
como se ser amada enjoasse,
como se ser comida estragasse,
como se paixão triste valesse;
te amo com o valor de todas as mulheres,
com o torpor de quem muito quisesse,
com o terror de quem adoecesse.
E não te amo a ti,
mas ao ato recôndito de amar,
que se revela no Euclides que me és,
e que me enaltece quando o faço voar,
e que não é só sombra e peso e solidão,
mas me estraga os dentes e os ombros e o cabelo,
e me relembra de fígado e cólicas e pólipos,
e me desgraça os seios
e me machuca os olhos,
e é um Euclides furado feito raro balão;
e te amo com o sabor de todas as mulheres,
daquele que refaz todo o alimento
e o transforma em nutrição.
E não te amo a ti,
nem mesmo a mim,
nem mesmo à filosofia do amor,
nem mesmo ao poema de amor;
talvez nem ame,
talvez só haja a madrugada
e por isso apenas declame
o que tu és no agora,
e, visto que és vexame,
então não amo nada,
e te amo com o amor de todas as mulheres,
e te amo com o amor de todas as fadas.










22


Euclides,
meus olhos manchados de tanto chorar,
um choro curtinho e sem meleca,
um choro cansado que nunca seca,
minha moça perdida nesse eterno esperar.
E é espera de tempo,
e o tempo nunca volta,
e quase sempre voa
e não leva a gente,
quase sempre embora num pulsar constante,
e a mulher só aposta
num deus indecente,
o deus-morcego
que são todos os homens,
o deus perdido na selva em frente,
o deus combalido
de uma guerra jovem,
o pouco deus do amor
também ferido.






23


Nunca sei que horas são em teu peito
e considero isso um defeito
teu, meu, nosso,
e por isso não mais almoço
até que decomponha esse caroço
com as enzimas dos meus destroços.












27


...e desse desencontro que me faz chorar e rir,
cagado pelo encontro louco que me arreganha os lábios
e o plexo-fêmea,
que me cega os pelos
e me faz sentir medo e pavor e desejo;
e dessa busca medonha e cansativa e fugaz e inocente
que é te encontrar e te perder no mesmo minuto,
transformas minutos em labirintos
e eu que me foda,
sem corda nem pão,
com um objetivo quase fútil
quase sério
quase negro
quase às claras
quase sempre meio nada,
como quem quisesse rimar
e não soubesse de acordes,
como quem pudesse cantar
e preferisse dormir;
…cabanas,
tendas no tempo,
vendavais acabando com minhas solidões,
não aguento,
não te aguento mais,
Euclides,
me despe dessa minha fraqueza injusta,
emblemática,
estou cansada de tudo o que dizes,
do que te tornas
sendo,
estou fatigada de tudo o que queres
e mais do que não entendes,
e mais ainda, pior,
do que por isso pretendes,
estou enfastiada do teu medo
e de todo esse segredo,
dessa perjúria,
dessa amargura,
até mesmo dessa luxúria...














28


...e essa tristeza
e essa loucura
e essa sensação de nada;
e toda luxúria
e toda beleza
e tudo o que se ganhou pro nada...










29


...e essa incerteza
e essa amargura
e todo o futuro
ainda que às escuras
claro penetrava
e preenchia
todas as falhinhas
do meu muro
e murmurava
“amor”...
no hoje, o “nunca”
no agora, o “quando?”
no nada, o que se tirou do todo…










30


O amor nada mais é que um preenchedor
e, portanto,
um ente burocrático
e digno de desprezo civil.
Do amor só devem restar algumas lembranças
e ai daquele que não tiver lembranças para restar com elas;
é essa qualidade ditatorial
que o faz onipotente, onipresente, oninconsciente.
Do amor já não quero nada,
pois tudo o que quis, recebi
e, ainda assim, não me contentei;
fico só com a esperança de que,
sendo o que é,
seja diferente em seu modo de massacrar,
de desesperar,
de partir.


























APOLO, MORTO


1


Vou soltar um aboio
e ajunto minha boiada
e a mulher solta no mundo é assim, mulher não foi feita pra ficar solta no mundo, o mundo se esconjura todinho com uma mulher dessas, ninguém quer, todo mundo quer, os bois sai correndo no pasto, é uma beleza de ver, ninguém mais ajunta, não tem aboio firme nem padre nem santo nem ouro nem pau grande nem pequeno nem suíço nem ingleses nem pranto de mãe nem arreio de cinto nem paulada nem coisa nenhuma de nenhum brasil que ajunte, mulher perdida no meio do aboio oco da solidão deixada largada parida esquentada esfriada é uma merda,
vou soltar meu aboio ver se ajunto meus boi,
os que ajunto hoje serve pra depois, mas não serve porque se me largam de novo já volta tudo de novo, o terror a cólera o medo os verme a tristeza os sonhos bons misturado com os sonho mau e o pior a vagina que pede
não adianta,
não tem aboio que dê jeito nessa ventura
é melhor ficar quieta parada fazendo de conta que é estauta que nem mosca pode pisar é mármore pedra fria parada eu faço de conta e ganho os dia me alimento de dia de noite de hora de tempo e perco o mundo mas ganho o tempo
perco o mundo
mas ganho o tempo








2


Mais uma vez, esses Andes falidos,
pois nessa minha terra não há neve
e as montanhas só servem para chatear;
tapam a visão de quem já não vê nada,
há muito não vê nada,
ou parece que foi ontem que tudo terminou?
Ou parece que estou em Brasília,
terras planas, cerrado,
e por montanhas
tomo a solidão que me abate?
Estou num cenário bíblico ou andino ou estranho qualquer,
confundo essa vegetação rasteira
com os olhos de quem não me quer,
confundo neve com comida mineira,
confundo meu pranto com o de outra mulher.








3


Me leva contigo,
príncipe do além,
gruta estranha que eu não posso adentrar,
desconhecido e pútrido
com teu calar por donde saem as piores coisas,
príncipe do escuro,
mesmo meu sangue rejeitas;
essa brancura infinita que esconde todos os vermes,
esses olhos profundos que dissimulam toda a maldade,
todo o pavor,
tu próprio tens medo da tua sombra;
meus nervos não te aguentam,
príncipe lunar.
Espalho na minha casa toda sorte de espantos,
te expurgo com todas as maledicências,
te abomino com toda a raiva e ódio e rancor,
e ainda assim não te vais
não te esvais
e nem me deixas
nem em pensamento
nem em solidão.
Príncipe secreto,
estar contigo é o mesmo que estar perdida,
é como num labirinto a céu aberto:
as estrelas são belas e quase acessíveis,
mas não se encontra a saída,
nem mesmo a entrada,
nem mesmo o Minotauro.
Príncipe soturno,
me carregas no colo em noite de núpcias
e me enlouqueces todinha
somente para que, quando eu mirar o espelho,
não veja a tua imagem,
nem a minha.














4


E foi aí que eu perguntei a ele
mas seu moço isso é coisa que se faça
deixar uma moça assim, uma quase-donzela, a mercê das mosca e dos bicho tudo e não dar nem um cheiro na priquita dela e só ficar falando essas maluquice de homem branco de homem rico de homem que tem problema
na minha terra os problema são é outro
é a fome que não deixa ninguém ter mais problema nenhum
lá se junta dois três quatro vizinho ninguém vai falar tô confuso quero água mas quero ter sede porque a seca vem e diz pra todo mundo é sede,
então a opção da gente é sede e vai sede mesmo,
a seca inteira falando disso é um esquema mais solidário que dá pra todos a mesma impressão de ser gente ingual, sem privilégios, a sede igualando a todos, uma beleza, é a justiça da natureza,
mas aqui no sul parece que não sei
os problema é outro
as solução mais outra ainda
eu quero água mas quero ter sede então tiro de quem tem e fico só espiando o copo, alisando o copo, aquele copo cheiinho, as gota caindo pelas beirada, eu hein, que maluquice, seu moço, que leseira, seu moço tá é leso, quando o dono do copo vem e diz dá cá o copo, fi’du’a égua, aí seu moço que se fazia de bobo mas de bobice num tem é nada diz não, eu quero água, mas antes tenho que olhar, antes tenho que alisar, antes tenho que deixar evaporar…










5


Lá vai o lixão,
eh, diabo!!!
Aquela ponta rendada, é o quê?
Ah, é o vestido que eu usei uma vez pra dançar contigo…
estava sem calcinha, nem vieste verificar,
que lástima…
E embaixo, embaixo estão os lugares
que visitamos rapidinho
-    barraca de sucos,
burrito,
teu escritório,
um shopping caro,
meu sofá, minha cama…
Ali, no cantinho, se rasgando todo,
o que é?
O manto que eu vinha tecendo
com todo o teu sêmen que eu guardei;
tricô perfeito com o líquido da vida,
da nossa vida – juntos.
Mais pra lá, só se vê quando o sol bate,
olhe agora, olhe agora,
que será?
…uma canção, um poema,
lembrança em carne viva de dias felizes,
algo assim.












6


Não morras nunca,
Apolo,
pois se morreres morrerá toda a minha seca solidão de ti.
Melhor permaneceres assim,
apenas calado,
inerte,
incólume
e inacabado,
tendo o sépia como dom
e as notas bemóis como tom.
Híbrido.
Íngreme.
Ístmico.












7


Morte morreste em singela noite de verão,
meu vestido amarelo de aberturas nas pernas,
a dor do adeus me atacando o ventre,
eu mesma mal sabia
o quanto te abandonava, ali.
E não houve perdão.
Me juntei
e nesse rejunte
desisti de ti
em favor de uma eu mais real e autêntica,
mais feliz.
Por que não vieste comigo, Apolo?
Como prometias,
como prometeste…
Nem sonho contigo, já, sabias?
Vida viveste?
Morte morreste.