Alguns textos publicado em mídia impressa acharam que esse blog era quentinho e resolveram ficar por aqui também.
REVISTA HINENI – 2011
Frankl: Para que queremos nossa humanidade? História
O neurologista e psiquiatra Viktor Emil Frankl nasceu em Viena em 1905, numa família judia. Em 1942 foi preso pelos nazistas e levado para quatro campos de concentração diferentes até sua liberação em 1945, quando a guerra acabou. O campo, embora lhe tivesse imposto todas as agruras de viver em condições inimagináveis de vida, lhe propiciou, ao mesmo tempo, um excelente meio de verificação – e experimentação empírica, na própria pele – daquilo em que acreditava desde sua infância: a vida tem sentido. E mais ainda: se faz sentido viver na alegria, também o faz viver na tristeza. Viktor Frankl presenciou vários exemplos de cumprimento de sentido, realizando o seu próprio ao confortar, como médico e amigo, aqueles que se encontravam em situação existencial pior que a dele.
É essa mesma concepção de mundo que fez com que rompesse intelectualmente com Freud e Adler, ambos também vienenses, centrando, entretanto, suas temáticas em posições muitos distintas da de Frankl – Freud na vontade de prazer, Adler na vontade de poder. A vontade de sentido, dirá Frankl, é a que realmente move o homem; se assim não fosse, não haveria quem estivesse disposto a morrer por uma idéia.
Portanto, esse pensador extraordinário, que cunhou o termo “vazio existencial”, faz do sentido sua pedra fundamental. Usa este termo significando aquilo que está esperando ser descoberto, reconhecido e realizado por aquela pessoa única, naquele momento específico, daquela forma singular e inequívoca, e não algo abstrato ou intangível, como “amar e ser amado”, “fazer o bem”, “ser feliz”. Sentido é aquilo exclusivo e não é outra coisa, nem ninguém além daquela pessoa chamada poderá concretizá-lo.
O sentido é, antes de mais nada, uma projeção dessa singularidade sobre coisas que podem não ter nenhum significado por si, sendo neutras em si mesmas. Apesar disso, o sentido é o valor exato, correto, que algo possui, devendo, entretanto, ser decifrado, percebido pela consciência. E faz parte das experiências da consciência reconhecer valores em determinadas atividades, ou estados do ser, ou mesmo nas situações de sofrimento e dor.
Cada pessoa, como ser particular que é, experimentando seu momento que também é irrepetível, tem algum valor para cumprir; é preciso reconhecer qual é o chamado que a vida lhe faz nesta direção, e atendê-lo com o máximo de sua capacidade. Uma vida assim vivida sempre parecerá plena de sentido, ainda que lhe advenham grandes calamidades, como, por exemplo, a guerra.
E por isso mesmo o próprio sofrimento não é uma desculpa para o desespero ou para o vazio existencial, porquanto o sentido é a própria vida. Assim, os valores de atitude, ou seja, a atitude de dignidade que se pode adotar diante da dor
7inevitável, da culpa ou da morte, é o valor mais alto que existe para ser cumprido, metamorfoseando os aspectos trágicos em logros positivos, em conduta que conforta e exemplifica.
Frankl cria então a Logoterapia, método de psicoterapia calcado nas possibilidades mais altas do ser humano (numa clara complementação à psicologia profunda). Ele entende a realização de valores em três maneiras: a) valores de criação: vivenciados através do trabalho ou de algo que está para ser criado e que só pode ser feito por aquela pessoa única – em geral ações com utilidade para outros; b) valores de experiência: percebidos na relação com o outro ou com o mundo, como na contemplação artística ou religiosa, no amor e dedicação a algo ou a alguém, na admiração da natureza; c) valores de atitude: realizados de acordo com a postura adotada perante a dor, a culpa e a morte.
Diante deste conjunto de valores, onde o sofrimento faz parte da vida e, longe de ser rechaçado, deve ser trazido ao cerne dela como outra oportunidade de realização de sentido, Frankl enriquece a Logoterapia com mais uma faceta: a da autotranscendência. Sendo um judeu bastante pio, mas casado com uma católica também muito religiosa, Frankl aprendeu a se ligar não apenas a uma religião, a um rabino ou mestre de nenhuma natureza: estava completamente conectado com o fenômeno humano da ligação com Deus, do desejo humano de se autotranscender, da possibilidade puramente humana de encontrar a si próprio fora de si.
Atualidade
Quais são as mensagens que a Logoterapia nos dá que podem ser aproveitadas por nós, hoje mesmo, aqui, onde estamos, lendo este artigo?
Quiçá entendendo a vida como uma sucessão de sentidos esperando para ser cumpridos possamos nos fazer as perguntas que realmente têm que ser feitas – as perguntas do para quê das nossas atividades. Podemos resolver se devemos fomentar ou terminar com os conflitos. Se devemos continuar produzindo armas ou bani-las porque, afinal, não seremos jamais atacados por seres não- humanos. Enfim, poderemos questionar sobre o destino da humanidade – se a queremos para os humanos ou para guardá-lo nos livros e vídeos do youtube.
O que sabemos sobre Frankl é que ele viu, especialmente na sua experiência no campo de concentração, que a pessoa é pluri – unitas multiplex –, isto é, que, na sua pluralidade interna, na interposição entre suas diversas camadas, ela pode sempre optar por uma postura que a liberta dos confinamentos tradicionais como meios familiar e social, mesmo condições psicológicas (Frankl relata ao longo de sua obra vários casos de pacientes psíquicos que reconheciam essa dimensão da liberdade de escolher a postura a adotar mesmo diante das dificuldades do seu psiquismo enfermo).
O curioso é que nós, do alto de nossos países auto-intitulados democráticos, não consigamos nem nos perguntar suficientemente alto sobre o para quê: qual o para que de se construir uma usina nuclear sobre a qual não teremos nenhum controle, ou o para que de se construir um país para quem a guerra organiza tanto sentido quanto a liberdade religiosa, ou o para que de se manter uma crença econômica que faz destruir caixas de tomate porque os preços de venda não estão justos, ou o para que de se patentear genomas como se houvessem sido criações próprias como uma canção (embora não pelos mesmos motivos), ou o para que de se fazer obras de infraestrutura sem que elas contemplem o seu próprio para quem; ou ainda o para que de uma economia baseada simplesmente no consumo desenfreado, ou mesmo uma educação que visa a colocação de pessoas no mercado de trabalho, como se não existissem outros mercados igualmente importantes, ou melhor, como se não houvesse outras importâncias que só podem ter vazão com a nossa atenção, e que, na falta desta, acabam por explodir e afetar a todos. Neste sentido podemos falar da crise de valores que viemos experimentando desde as grandes guerras, mas que tem se apresentado com uma certa cotidianidade neste início de milênio, crise parcelada em simbólica (derrubada das Torres Gêmeas), das finanças (crise financeira), da informação (as Leaks tanto do Assange quanto de Israel), das infraestruturas (cujo expoente maior é o problema nuclear do Japão desencadeado pelo tsunami, mas, antes disso estiveram os inúmeros desastres ecológicos advindos de navios vazando nos oceanos de todos, causados pelo entender econômico do homem).
Enfim, essas frases todas têm por intuito, na verdade, nos levar a lembrar que somos livres para refletir sobre nosso passado, nosso presente, nosso futuro. Como país, podemos decidir nosso destino histórico – o nosso para quê. Para que o Brasil? No médio porte, podemos pensar: para quê esta minha empresa? Para que este produto, para quê este nível de lucros, para que esta maneira de se pensar a economia, a política, a educação? Para formar que pessoa? Para exercer que bem? E ainda, para que o Judaísmo?
Sim, é preciso coragem para rever-se tanto. Mas nos temos essa coragem. É chegada a hora de usá-la.
REVISTA AFIRMATIVA PLURAL – 2010
A (Re)Invenção Do Negro – Movimentando A História
O início do século XXI baliza, para a população afrodescendente do Brasil, alguns avanços em direção à liberdade. A Faculdade Zumbi dos Palmares, iniciando suas atividades em 2004, é um marco da matriz educacional, assim como as leis sancionadas neste Julho de 2010 em prol da ampliação do pensamento inclusivo o é na matriz sócio-política.
Os movimentos que vêm a pensar essa condição surgem na América Latina desde o começo do século passado, com força especial na Colômbia, Uruguai Venezuela, além do Brasil. Nestes países, um pouco mais, um pouco menos, foram ganhando corpo, mudando de nome, aumentando o alcance, adicionando demandas, alargando a autoconsciência, sempre em busca de reorganizar a vida, a contribuição e o sentido desta população na sociedade em que se encontra.
Mas talvez seja preciso revisar um pouco os acontecimentos do passado para que se possa configurar um novo presente. Se não pensarmos na história do continente americano, será difícil mesmo falarmos de negros de uma maneira geral. Negro – a raça – é a criação européia de uma categoria política com um fim político. Negro não é simplesmente quem veio da África; se assim fosse, não seriam nem chamados nem classificados de negros seus descendentes aqui vindos à luz séculos depois. Caso o termo “negro” não fosse uma categoria política, os nascidos no Brasil, independentemente da cor, seríamos apenas brasileiros. É importante perceber que do surgimento dessa categoria é que se torna possível a uma organização político-espacial intitulada Europa constituir- se como um todo único (que não era, anteriormente) e pleno de direitos de exploração sobre povos e terras alheios, a quem, por isso mesmo, chamou “o outro”, escravizando-o, destituindo-o, alienando-o. Não que não houvesse escravos antes na história. O que não havia é a deposição das suas pessoalidades da forma institucionalizada como se deu por aqui.
A América Latina – evento criador, portanto, da modernidade – e essa parte de sua gente, os negros, não terá ainda despertado totalmente para este fato de dupla significação: primeiro, a da construção de toda uma era, um corpo conceitual, um modo de ver o mundo, edificado sobre a noção de uma raça que seria, por sua simples constituição, digna de inferiorização.
Em seguida, vemos que, enquanto na África há africanos, é aqui nestas terras nossas que se instaura o advento do “negro”, a quem configuram precisamente as seguintes condições: exílio, escravatura, racificação, destituição da memória, miscigenação, nacionalização. Neste processo, não há volta atrás; isto é, jamais deixaremos de ser brasileiros, colombianos, venezuelanos; e o caminho para frente não é, tampouco, a emigração de volta para a África, pois tamanhas são as diferenças que nos constituem. Seu processo é bem outro – ainda que igualmente sangrento. O africano perdeu família, mas nem por isso se miscigenou; teve seu povo dividido em linhas arbitrárias na convenção de Berlin de 1885, embora tenha mantido, ainda assim, a sua língua; foi inferiorizado e destituído em sua própria terra, e trabalha até hoje para restituir os danos desses feitos.
A conseqüência dessas diferenças entre mãe e filha é a linha com que nós, a filha, costuramos nossa história: Latinoamérica. Assim sendo, é aqui mesmo, nestas nossas terras que deve/pode instituir-se esse ser, o negro, já de posse do seu relato, como quem busca para si um novo devir, próprio, único, sujeito a erros e acertos, os quais serão por ele mesmo classificados, revistos, consertados.
É bem verdade que ainda falta um bocado para uma concretização ótima: população negra produzindo em um ambiente igualitário de oportunidades, direitos e distribuição de bens, tangíveis e intangíveis. No entanto, aprendemos todos a duras penas que a igualdade não é um ideal simples, especialmente se não está no nascedouro mesmo da nação.
Podemos observar que a negritude é, acima de tudo, um processo temático, que inclui uma noção nova de História, uma Geografia, uma Pedagogia, uma Cosmovisão que não termina no passado, mas, antes, se perpetua ao infinito, e que tem uma localização específica – não como um grupo excludente de países, mas como um laço includente de excluídos –, que é esta Latinoamérica que nos une.
E daí teremos meios, quiçá, de perguntar: afinal, para que sermos negros? Qual a importância de manter o uso dessa categoria política, se não for para oferecer aos que dela padecem condições de alterar o seu próprio destino histórico? Por que identificar-se com a dor e nela eternizar-se, em vez de acolhê-la como algo que está no nosso passado e que não permitiremos que configure nosso destino histórico? Ou, melhor ainda, a que nível de liberdade nos damos o direito? Apenas de não sermos escravos, talvez, para nos mantermos “doentinhos”, isto é, sempre capazes de agüentar as outras atrocidades oriundas de uma “desescravização” a fórceps lento? Afinal, quantos de nós somos ainda analfabetos, não só nas letras, mas no acesso profundo à cultura do próprio país a que nos habituamos a chamar de nosso? Em quantos índices de desenvolvimento humano figuramos como o pólo pior que permite classificar pessoas em pobres e ricas? Ou, ainda mais significativo, quantos políticos negros preparamos nos nossos países com negros?
É na compreensão dessa dimensão que o simples fato, ainda que “atrasado” (diante do calendário ideal), das sanções de Julho torna-se pedra angular na constituição de um Brasil mais pleno de pessoas. Mas, cuidado, pedra angular significa apenas pedra. O que será feito dela é item que exige atenção perene. Terá servido para unificar a movimentação em torno da nossa temática? Seremos capazes de levá-la adiante em nossas conversas com os jovens, esclarecendo pontos para que eles conheçam seus novos direitos? Em outras palavras, estaremos nos abstendo do afazer político em troca do falar (mal) da política? Estaremos mesmo em condições de abandonar o navio?
O que quer que venhamos a fazer daqui para frente tem que significar união, troca, entendimento, abertura, política. Nada existe que não seja dentro dela. A raça e o advento americano foi uma ação política. A Faculdade Zumbi dos Palmares é um ato de coragem política. As sanções de Julho o são também. Este texto e esta revista. O hoje, como o ontem, é político. Fundamentalmente, pensar que alguém escolherá para si chamar-se negro em vez de qualquer outra coisa é uma atitude de cunho político e seus resultados, como todos os outros, têm que ser traduzidos em políticas públicas para o bem-estar da população de todas as denominações. Fora disso, é a miséria, sempre.
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